O relógio batia tic-tac-tic-tac. Aquele cansaço, cansaço de existir, cansaço da vida, silêncio, só o relógio acordado. Alguém bate a porta, é o carteiro com as correspondências do dia. No meio daquele monte de papel: cartas, propagandas e mais um sem fim de coisas, um exemplar da revista Superinteressante cuja matéria da capa era: O Anarquismo voltou? Lembranças, alegrias, tristezas, a palavra anarquismo trazia-me uma miríade de sentimentos, os mais diversos, os mais confusos. Comecei a lembrar-me de uma menina de tranças enormes, com um lápis e um caderno na mão, em seu primeiro dia de aula. Segurava firmemente a mão da irmã, a menina tinha tanta vontade de aprender a ler, encantava-se com as histórias da turma da Mônica, da Branca de Neve, da Cinderela, na verdade sentia-se a própria Cinderela, sempre pedia a irmã para lhe contar histórias. Mergulhava naquele mundo de sonhos e fantasias.
2ª série do ensino primário, a professora entra na sala, muito séria, cabelo impecável. O cabelo da professora era motivo constante de atenção por parte da menina, ela não entendia como a professora podia ter o cabelo loiro, se o mesmo era crespo. Matutava, matutava, e não entendia, como? No seu pensamento, só podiam ser loiras as pessoas que tinham os cabelos lisos. A professora em questão atendia pelo nome de Luzia, com o tempo, a menina inventou um apelido para ela, Luzia Gajê, não se sabe ao certo o motivo de tal alcunha, talvez tenha sido por a professora ter características físicas parecidas com as dos ciganos. Sisuda em alguns momentos, brincalhona em outros, pertencia à professora a Irmandade da Igreja Católica, muito puritana, empalidecia quando algum aluno falava um “palavrão”.
A menina de tranças tinha a infelicidade (ou felicidade) de ser muito conversadeira, conversava que era um horror, não parava a língua na boca, por vezes a professora Gajê a ameaçava: quando sair daqui, passarei na sua casa, vou conversar com sua mãe, desse jeito não dá. A menina tremia, mudava de cor, amedrontava-se, a certeza que dava para o mal, pensava ela. Não queria decepcionar a mãe que mesmo sendo analfabeta, tinha a preocupação e o gosto de colocar ela e seus oito irmãos na escola, pois mesmo passando necessidades a mãe nunca deixava que lhe faltassem cadernos e lápis. Sua mãe recomendava-lhe tanto que se comportasse na escola que fosse uma boa menina e o que ela lhe dava em troca? Decepção. A menina chegava em casa numa tristeza de dar pena, e a professora? Nada, nunca contou nada para a mãe da menina. Terrorismo puro.
Final do ano, a professora Gajê, vai à casa da menina, diz a mãe dela que sua filha não tem condições de passar de ano. Não sabe ler. A menina fica triste, mas fazer o quê? Se sua mãe quis rezar a cartilha da professora.
***
Repetência da 2ª série, pela primeira vez a menina sente falta da professora Gajê, a nova professora chamava-se Celeste, preguiçosa, faltava às aulas e no dia da prova deixava os alunos “colarem”. A turma ficava ao Deus dará, os alunos faziam o que bem quisessem, a menina não gostava dela, até para falar a achava preguiçosa. Aos olhos da menina, a professora Celeste era um fracasso. Durante as aulas da professora Celeste, a menina tratava de ocupar a sua mente com coisas mais “importantes”, refletia a respeito do que seria quando fosse “grande”? Gostava muito de animais e queria ser veterinária. Assistia cenas incríveis na TV e queria ser atriz. Encantava-se com sorrisos lindos e queria ser dentista. Passava horas olhando as estrelas e queria ser astronauta. Lia livros policiais e de ficção e queria ser espiã. Lia a história da Cinderela e queria ser uma princesa de contos de fadas.
***
3ª série, agradável surpresa, a professora Gajê estava de volta, trazia no seu vocabulário uma palavra desconhecida: anarquismo. Não podia um aluno conversar que ela já o chamava de anarquista. Às vezes, durante a aula quando ela ia à Secretaria da Escola buscar alguma coisa que tinha esquecido, os alunos aproveitavam a sua ausência, a sala virava um pandemônio, bolinhas de papel para lá, bolinhas de papel para cá, uma confusão danada, até desenhavam a professora Gajê no quadro, com seu cabelinho loiro, chanel básico. Sempre ficava um aluno na porta espionando para avisar quando a professora estivesse voltando, mas apesar dessa precaução, a professora ainda chegava a tempo de ver o final da bagunça. Era o maior auê, a professora queria saber quem era o autor da anarquia, a menina era sempre a iniciante das atitudes “anárquicas”, porém, quem mais sofria era seu primo Junior, não se sabe o motivo de tal implicância, o certo era que a Gajê o culpava por qualquer ato “anárquico”.
- É você não é Seu Júnior que fica me espionando? É você não é? Só pode ser você o autor da anarquia. Seu anarquista.
Um dia a professora Gajê chamou a mãe do Junior, para prestar queixa:
- Ou ele se consertar ou a Senhora vai ter que arrumar outra professora para ele.
Silêncio, a sala quieta, a turma toda com os olhos arregalados de medo, só a menina conservava-se calma. Em seu pensamento, ela viajava em contos de fadas, já tinha vestido a boneca, já a despira, imaginara-a indo a uma festa onde era o ornato do baile, um carro vinha então e atropelava a boneca. Depois vinha a fada e a fazia viver de novo, a boneca, a fada, não era senão a menina, que sempre arranjava um jeito de colocar-se no papel principal exatamente quando os acontecimentos iluminavam uma ou outra figura.
Inesperadamente, a mãe do “anarquista” vira-se para a menina.
- É ela professora, é ela que fica levando meu filho para o mau caminho. Ela sempre começa e nos piores momentos ela sai e deixa meu filho se prejudicar sozinho.
A menina não presta atenção na mãe do primo, naquele momento olha uma maçã que um dos alunos puxa-saco levou para a professora, imagina-se comendo a maça, sentia o gosto, o cheiro, não precisava se aproximar da maçã para sentir seu cheiro adocicado. De longe mesmo possuía as coisas.
A mãe do “anarquista” questionou a professora Gajê, querendo saber o motivo de tanta proteção da professora para com a menina. A professora se atrapalhou, deu um discurso que no final não dizia nada, porém, acabou enrolando a mãe do “anarquista”.
***
Aquela palavra na revista me fez lembrar desses acontecimentos e de muitos outros. Lembrei-me de quando aprendi a ler, de quando chorei com o Zezé de meu Pé de Laranja Lima, de como sofri ao ler O Diário de Anne Frank, de como fiquei feliz e otimista como Poliana, de como me emocionei com o Zé Orocó e sua amizade com a canoa Rosinha um verdadeiro hino de amor e respeito à natureza, de como aprendi com O Pequeno Príncipe que “o essencial é invisível aos olhos”. Ainda não sei o que vou ser quando for “grande”, só sei que não quero ser igual à professora Celeste, que não tinha respeito nem por ela própria. Não sei o que se consegue quando se fica feliz. Aprendi que no "universo nada se perde, nada se ganha, nem os dias, nem os anos, nem as horas, mas tudo se transforma. O universo inteiro transformado em lembranças".
2ª série do ensino primário, a professora entra na sala, muito séria, cabelo impecável. O cabelo da professora era motivo constante de atenção por parte da menina, ela não entendia como a professora podia ter o cabelo loiro, se o mesmo era crespo. Matutava, matutava, e não entendia, como? No seu pensamento, só podiam ser loiras as pessoas que tinham os cabelos lisos. A professora em questão atendia pelo nome de Luzia, com o tempo, a menina inventou um apelido para ela, Luzia Gajê, não se sabe ao certo o motivo de tal alcunha, talvez tenha sido por a professora ter características físicas parecidas com as dos ciganos. Sisuda em alguns momentos, brincalhona em outros, pertencia à professora a Irmandade da Igreja Católica, muito puritana, empalidecia quando algum aluno falava um “palavrão”.
A menina de tranças tinha a infelicidade (ou felicidade) de ser muito conversadeira, conversava que era um horror, não parava a língua na boca, por vezes a professora Gajê a ameaçava: quando sair daqui, passarei na sua casa, vou conversar com sua mãe, desse jeito não dá. A menina tremia, mudava de cor, amedrontava-se, a certeza que dava para o mal, pensava ela. Não queria decepcionar a mãe que mesmo sendo analfabeta, tinha a preocupação e o gosto de colocar ela e seus oito irmãos na escola, pois mesmo passando necessidades a mãe nunca deixava que lhe faltassem cadernos e lápis. Sua mãe recomendava-lhe tanto que se comportasse na escola que fosse uma boa menina e o que ela lhe dava em troca? Decepção. A menina chegava em casa numa tristeza de dar pena, e a professora? Nada, nunca contou nada para a mãe da menina. Terrorismo puro.
Final do ano, a professora Gajê, vai à casa da menina, diz a mãe dela que sua filha não tem condições de passar de ano. Não sabe ler. A menina fica triste, mas fazer o quê? Se sua mãe quis rezar a cartilha da professora.
***
Repetência da 2ª série, pela primeira vez a menina sente falta da professora Gajê, a nova professora chamava-se Celeste, preguiçosa, faltava às aulas e no dia da prova deixava os alunos “colarem”. A turma ficava ao Deus dará, os alunos faziam o que bem quisessem, a menina não gostava dela, até para falar a achava preguiçosa. Aos olhos da menina, a professora Celeste era um fracasso. Durante as aulas da professora Celeste, a menina tratava de ocupar a sua mente com coisas mais “importantes”, refletia a respeito do que seria quando fosse “grande”? Gostava muito de animais e queria ser veterinária. Assistia cenas incríveis na TV e queria ser atriz. Encantava-se com sorrisos lindos e queria ser dentista. Passava horas olhando as estrelas e queria ser astronauta. Lia livros policiais e de ficção e queria ser espiã. Lia a história da Cinderela e queria ser uma princesa de contos de fadas.
***
3ª série, agradável surpresa, a professora Gajê estava de volta, trazia no seu vocabulário uma palavra desconhecida: anarquismo. Não podia um aluno conversar que ela já o chamava de anarquista. Às vezes, durante a aula quando ela ia à Secretaria da Escola buscar alguma coisa que tinha esquecido, os alunos aproveitavam a sua ausência, a sala virava um pandemônio, bolinhas de papel para lá, bolinhas de papel para cá, uma confusão danada, até desenhavam a professora Gajê no quadro, com seu cabelinho loiro, chanel básico. Sempre ficava um aluno na porta espionando para avisar quando a professora estivesse voltando, mas apesar dessa precaução, a professora ainda chegava a tempo de ver o final da bagunça. Era o maior auê, a professora queria saber quem era o autor da anarquia, a menina era sempre a iniciante das atitudes “anárquicas”, porém, quem mais sofria era seu primo Junior, não se sabe o motivo de tal implicância, o certo era que a Gajê o culpava por qualquer ato “anárquico”.
- É você não é Seu Júnior que fica me espionando? É você não é? Só pode ser você o autor da anarquia. Seu anarquista.
Um dia a professora Gajê chamou a mãe do Junior, para prestar queixa:
- Ou ele se consertar ou a Senhora vai ter que arrumar outra professora para ele.
Silêncio, a sala quieta, a turma toda com os olhos arregalados de medo, só a menina conservava-se calma. Em seu pensamento, ela viajava em contos de fadas, já tinha vestido a boneca, já a despira, imaginara-a indo a uma festa onde era o ornato do baile, um carro vinha então e atropelava a boneca. Depois vinha a fada e a fazia viver de novo, a boneca, a fada, não era senão a menina, que sempre arranjava um jeito de colocar-se no papel principal exatamente quando os acontecimentos iluminavam uma ou outra figura.
Inesperadamente, a mãe do “anarquista” vira-se para a menina.
- É ela professora, é ela que fica levando meu filho para o mau caminho. Ela sempre começa e nos piores momentos ela sai e deixa meu filho se prejudicar sozinho.
A menina não presta atenção na mãe do primo, naquele momento olha uma maçã que um dos alunos puxa-saco levou para a professora, imagina-se comendo a maça, sentia o gosto, o cheiro, não precisava se aproximar da maçã para sentir seu cheiro adocicado. De longe mesmo possuía as coisas.
A mãe do “anarquista” questionou a professora Gajê, querendo saber o motivo de tanta proteção da professora para com a menina. A professora se atrapalhou, deu um discurso que no final não dizia nada, porém, acabou enrolando a mãe do “anarquista”.
***
Aquela palavra na revista me fez lembrar desses acontecimentos e de muitos outros. Lembrei-me de quando aprendi a ler, de quando chorei com o Zezé de meu Pé de Laranja Lima, de como sofri ao ler O Diário de Anne Frank, de como fiquei feliz e otimista como Poliana, de como me emocionei com o Zé Orocó e sua amizade com a canoa Rosinha um verdadeiro hino de amor e respeito à natureza, de como aprendi com O Pequeno Príncipe que “o essencial é invisível aos olhos”. Ainda não sei o que vou ser quando for “grande”, só sei que não quero ser igual à professora Celeste, que não tinha respeito nem por ela própria. Não sei o que se consegue quando se fica feliz. Aprendi que no "universo nada se perde, nada se ganha, nem os dias, nem os anos, nem as horas, mas tudo se transforma. O universo inteiro transformado em lembranças".
Nenhum comentário:
Postar um comentário