domingo, 19 de agosto de 2007




O relógio batia tic-tac-tic-tac. Aquele cansaço, cansaço de existir, cansaço da vida, silêncio, só o relógio acordado. Alguém bate a porta, é o carteiro com as correspondências do dia. No meio daquele monte de papel: cartas, propagandas e mais um sem fim de coisas, um exemplar da revista Superinteressante cuja matéria da capa era: O Anarquismo voltou? Lembranças, alegrias, tristezas, a palavra anarquismo trazia-me uma miríade de sentimentos, os mais diversos, os mais confusos. Comecei a lembrar-me de uma menina de tranças enormes, com um lápis e um caderno na mão, em seu primeiro dia de aula. Segurava firmemente a mão da irmã, a menina tinha tanta vontade de aprender a ler, encantava-se com as histórias da turma da Mônica, da Branca de Neve, da Cinderela, na verdade sentia-se a própria Cinderela, sempre pedia a irmã para lhe contar histórias. Mergulhava naquele mundo de sonhos e fantasias.
2ª série do ensino primário, a professora entra na sala, muito séria, cabelo impecável. O cabelo da professora era motivo constante de atenção por parte da menina, ela não entendia como a professora podia ter o cabelo loiro, se o mesmo era crespo. Matutava, matutava, e não entendia, como? No seu pensamento, só podiam ser loiras as pessoas que tinham os cabelos lisos. A professora em questão atendia pelo nome de Luzia, com o tempo, a menina inventou um apelido para ela, Luzia Gajê, não se sabe ao certo o motivo de tal alcunha, talvez tenha sido por a professora ter características físicas parecidas com as dos ciganos. Sisuda em alguns momentos, brincalhona em outros, pertencia à professora a Irmandade da Igreja Católica, muito puritana, empalidecia quando algum aluno falava um “palavrão”.
A menina de tranças tinha a infelicidade (ou felicidade) de ser muito conversadeira, conversava que era um horror, não parava a língua na boca, por vezes a professora Gajê a ameaçava: quando sair daqui, passarei na sua casa, vou conversar com sua mãe, desse jeito não dá. A menina tremia, mudava de cor, amedrontava-se, a certeza que dava para o mal, pensava ela. Não queria decepcionar a mãe que mesmo sendo analfabeta, tinha a preocupação e o gosto de colocar ela e seus oito irmãos na escola, pois mesmo passando necessidades a mãe nunca deixava que lhe faltassem cadernos e lápis. Sua mãe recomendava-lhe tanto que se comportasse na escola que fosse uma boa menina e o que ela lhe dava em troca? Decepção. A menina chegava em casa numa tristeza de dar pena, e a professora? Nada, nunca contou nada para a mãe da menina. Terrorismo puro.
Final do ano, a professora Gajê, vai à casa da menina, diz a mãe dela que sua filha não tem condições de passar de ano. Não sabe ler. A menina fica triste, mas fazer o quê? Se sua mãe quis rezar a cartilha da professora.
***
Repetência da 2ª série, pela primeira vez a menina sente falta da professora Gajê, a nova professora chamava-se Celeste, preguiçosa, faltava às aulas e no dia da prova deixava os alunos “colarem”. A turma ficava ao Deus dará, os alunos faziam o que bem quisessem, a menina não gostava dela, até para falar a achava preguiçosa. Aos olhos da menina, a professora Celeste era um fracasso. Durante as aulas da professora Celeste, a menina tratava de ocupar a sua mente com coisas mais “importantes”, refletia a respeito do que seria quando fosse “grande”? Gostava muito de animais e queria ser veterinária. Assistia cenas incríveis na TV e queria ser atriz. Encantava-se com sorrisos lindos e queria ser dentista. Passava horas olhando as estrelas e queria ser astronauta. Lia livros policiais e de ficção e queria ser espiã. Lia a história da Cinderela e queria ser uma princesa de contos de fadas.
***
3ª série, agradável surpresa, a professora Gajê estava de volta, trazia no seu vocabulário uma palavra desconhecida: anarquismo. Não podia um aluno conversar que ela já o chamava de anarquista. Às vezes, durante a aula quando ela ia à Secretaria da Escola buscar alguma coisa que tinha esquecido, os alunos aproveitavam a sua ausência, a sala virava um pandemônio, bolinhas de papel para lá, bolinhas de papel para cá, uma confusão danada, até desenhavam a professora Gajê no quadro, com seu cabelinho loiro, chanel básico. Sempre ficava um aluno na porta espionando para avisar quando a professora estivesse voltando, mas apesar dessa precaução, a professora ainda chegava a tempo de ver o final da bagunça. Era o maior auê, a professora queria saber quem era o autor da anarquia, a menina era sempre a iniciante das atitudes “anárquicas”, porém, quem mais sofria era seu primo Junior, não se sabe o motivo de tal implicância, o certo era que a Gajê o culpava por qualquer ato “anárquico”.
- É você não é Seu Júnior que fica me espionando? É você não é? Só pode ser você o autor da anarquia. Seu anarquista.
Um dia a professora Gajê chamou a mãe do Junior, para prestar queixa:
- Ou ele se consertar ou a Senhora vai ter que arrumar outra professora para ele.
Silêncio, a sala quieta, a turma toda com os olhos arregalados de medo, só a menina conservava-se calma. Em seu pensamento, ela viajava em contos de fadas, já tinha vestido a boneca, já a despira, imaginara-a indo a uma festa onde era o ornato do baile, um carro vinha então e atropelava a boneca. Depois vinha a fada e a fazia viver de novo, a boneca, a fada, não era senão a menina, que sempre arranjava um jeito de colocar-se no papel principal exatamente quando os acontecimentos iluminavam uma ou outra figura.
Inesperadamente, a mãe do “anarquista” vira-se para a menina.
- É ela professora, é ela que fica levando meu filho para o mau caminho. Ela sempre começa e nos piores momentos ela sai e deixa meu filho se prejudicar sozinho.
A menina não presta atenção na mãe do primo, naquele momento olha uma maçã que um dos alunos puxa-saco levou para a professora, imagina-se comendo a maça, sentia o gosto, o cheiro, não precisava se aproximar da maçã para sentir seu cheiro adocicado. De longe mesmo possuía as coisas.
A mãe do “anarquista” questionou a professora Gajê, querendo saber o motivo de tanta proteção da professora para com a menina. A professora se atrapalhou, deu um discurso que no final não dizia nada, porém, acabou enrolando a mãe do “anarquista”.
***
Aquela palavra na revista me fez lembrar desses acontecimentos e de muitos outros. Lembrei-me de quando aprendi a ler, de quando chorei com o Zezé de meu Pé de Laranja Lima, de como sofri ao ler O Diário de Anne Frank, de como fiquei feliz e otimista como Poliana, de como me emocionei com o Zé Orocó e sua amizade com a canoa Rosinha um verdadeiro hino de amor e respeito à natureza, de como aprendi com O Pequeno Príncipe que “o essencial é invisível aos olhos”. Ainda não sei o que vou ser quando for “grande”, só sei que não quero ser igual à professora Celeste, que não tinha respeito nem por ela própria. Não sei o que se consegue quando se fica feliz. Aprendi que no "universo nada se perde, nada se ganha, nem os dias, nem os anos, nem as horas, mas tudo se transforma. O universo inteiro transformado em lembranças".

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Homenagem ao incentivador da criação desse blog.

Em homenagem ao meu amigo Alisson que foi o incentivador da criação desse blog. Vi essa ciranda no blog dele e achei muito linda. Adoro essas bailarinas do Degas. Alisson, minhas bailarinas são mais "compostas" que a sua viu?

Ciranda da Bailarina

Procurando bem todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira, berruga nem frieira,
Nem falta de maneira ela não tem
Futucando bem todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem um irmão meio zarolho
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida, nem dente com comida
Nem casca de ferida ela não tem
Não livra ninguém, todo mundo tem remela
Quando acorda às seis da matina
Teve escarlatina ou tem febre amarela
Só a bailarina que não tem
Confessando bem todo mundo faz pecado
Logo após a missa termina
Todo mundo tem um primeiro namorado
Só a bailarina que não tem
Medo de subir, gente
Medo de cair, gente
Medo de vertigem quem não tem
Sujo atrás da orelha, bigode de groselha
Calcinha um pouco velha ela não tem
O padre também pode até ficar vermelho
Se o vento levanta a batina
Reparando bem, todo mundo tem pentelho
Só a bailarina que não tem
Sala sem mobília, goteira na vasilha
Problema na família quem não tem
Procurando bem Todo mundo tem...